Quando pararemos de chorar?

Por Andreia Britto

 

Noventa e quatro. Noventa e dois. Noventa. Oitenta e sete. Oitenta e seis, mostrava o aparelho comprado na farmácia, o tal do oxímetro. No telefone, a atendente do SAMU diz que com essa saturação, eu corria o risco de morrer em casa.

Foi assim que, no dia 22 de março, fui encaminhada à UPA, em busca de oxigênio, e diagnosticada com Covid-19. Pude contar com o apoio de uma equipe do SAMU sensível à situação, que realizou o transporte à UPA com um acolhimento indescritível, transmitindo confiança, com um olhar de empatia que alivia medos e incertezas. Fiquei quatro dias em uma cadeira e, para dormir, colocava-se outra cadeira de apoio. Afinal, com sintomas graves, o corpo perde as forças. As UPAS do Distrito Federal só tinham leitos para os pacientes entubados e aguardavam a liberação de vaga nos hospitais de campanha.

As UPAs são locais de atendimento emergencial, com contato com doentes nos quadros mais críticos, onde realizam os primeiros protocolos de atendimento. Muitas vezes, solicitam-se remédios às famílias, já que não possuem as medicações necessárias para a realização dos procedimentos. Esse espaço da saúde pública deveria ter um quadro de médicos e de profissionais da saúde completo, sem desfalques, mas a realidade era outra: faltavam profissionais e aqueles que estavam trabalhando, faziam-no em condições desumanas.

Morrer por falta de oxigênio, por falta de vagas ou de medicações é resultado da incompetência dos administradores

Além disso, estão recebendo doentes das áreas rurais, do entorno do Distrito Federal, das cidades do interior de Minas Gerais e Goiás. Há pacientes que chegam de transporte público, sozinhos e, ao serem internados, recebem de imediato o comunicado de que precisam que algum parente leve a medicação necessária. Quando essa medicação chega, muitas vezes, o paciente já se encontra internado há mais de 24 horas, com dores e sintomas mais graves. No hospital de Campanha da Ceilândia, ao qual fui transferida, também faltavam insumos necessários, sobretudo, no caso de intubações. Trata-se de outra realidade, como se os atendimentos estivessem sendo feitos em locais distantes da civilização, com cuidados e atendimento limitados por falta de condições adequadas.

Via médicos chorarem de dor, por terem que escolher quem iriam salvar, em razão da indisponibilidade de oxigênio e leitos a todos. Ficavam reféns do  sistema, em que a ordem é priorizar aqueles com maiores chances de recuperação, algo muitas vezes imprevisível nessa doença. O que resta é a solidariedade. Nunca teve tanto significado para mim a frase “ninguém solta a mão de ninguém”, pois desconhecidos se tornavam irmãos na luta pela vida, dividindo refeições e oxigênio, medos e esperança.

Embora façam um trabalho exemplar, os profissionais da saúde não são super-heróis, são seres humanos que sentem cansaço, exaustão, frustração e dor. A romantização dos profissionais da saúde, das jornadas de trabalho intermináveis, do sacrifício que fazem para salvar vidas é utilizada pelos governos locais e federal para mascarar a realidade. Faltam nas UPAs equipamentos de proteção individual, como luvas e roupas adequadas. Faltam medicações, analgésicos, até mesmo xaropes para tosse. É nesse contexto que as equipes médicas das UPAs e dos hospitais de campanha do DF trabalham incansavelmente.

A Constituição da República prevê como direito fundamental de cada cidadã e cidadão o acesso gratuito à saúde pública. Isso envolve o atendimento médico, as medicações, a alimentação e leitos. O abandono da saúde pública tanto do DF como as demais cidades do país viola frontalmente os direitos humanos. Morrer por falta de oxigênio, por falta de vagas ou de medicações é resultado da incompetência dos administradores. A ausência de campanhas nacionais de conscientização sobre a necessidade do uso de máscaras, álcool gel e higienização adequada reflete a falta de planejamento para combater a pandemia.

Deixo registrado meu apoio e agradecimento aos profissionais da saúde e à toda equipe que auxilia no tratamento aos pacientes infectados pela Covid-19, desde os profissionais do SAMU até funcionários da cozinha dos hospitais de campanha. Precisamos reconhecer o valor do SUS e atuar em sua defesa.

Andréia Lopes Britto é Advogada

 

 

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